(in)confidências

Desidério Sargo

O ser humano como ser multifacetado dependente de contextos, imagens, épocas, contactos, vivências e experiências. Neste momento ambivalente entre o que mostra de si e o que esconde, jogam e dançam o ser, o mostrar, o esconder, o aceitar, o querer/desejar, o representar, …, jogo de sons e imagens que não têm realidade em si, mas existem apenas e porque são gravações/reproduções. A ambiguidade do privado que se torna público, uma intimidade revelada, mostrada e partilhada.

Mapeamento | Mapping

(in)confidências - foram feitas gravações de pessoas que se mostram, que falam de si... conversas informais em transportes públicos. Cada assento transporta-nos para uma viagem, um encontro com o outro.

Textos

(in)confidências

Desidério Sargo


Projeto para exposição coletiva de artes plásticas organizada no âmbito das «Comemorações dos 600 Anos do Descobrimento das Ilhas da Madeira e Porto Santo» - Quinta Magnólia.



Um mini autocarro estacionado convida a entrar. No interior um confronto intimista com várias realidades. Várias pessoas em vários códigos QR que digitalmente nos transportam para outras personagens que partilham (in)confidências.
Os autocarros transportam pessoas e muitas estórias... é quase inevitável não sermos bombardeados com conversas, desabafos e confidências...
Ouvir, ver e partilhar estes momentos de intimidade não para saber da “vida alheia” nem julgar o outro na sua individualidade, nos seus medos, no seu fundo de opacidade... mas encontrar-se de certa forma... numa procura de um lugar próprio e de identidade.


A definição da auto imagem, do auto conceito e a ideia que fazemos de nós é condicionada pela ideia que achamos que os outros fazem de nós. O ser humano como animal (ser) multifacetado dependente de contextos, imagens, épocas, contactos, vivências e experiências, procura “habitar (se)” no espaço que ocupa mas necessita de sair da sua irredutível individualidade para tentar a comunicação com o outro. Neste momento ambivalente entre o que mostra de si e o que esconde, jogam e dançam o ser, o mostrar, o esconder, o mudar, o aceitar, o querer/desejar, o representar, …, jogo de sons e imagens projetadas, desenhadas, fotografadas que não têm realidade em si, mas existem apenas e porque são gravações/reproduções.
Ver-se no e pelo outro, fruir uma emoção estética, um estado emocional, mental e/ou físico.
Este olhar-se no outro e refletir-se acaba por ser uma forma de catarsis, de exorcizar aspectos que possam preocupar, causar ansiedade, transtornar, entristecer e amedrontar.
A ambiguidade do privado que se torna público, uma intimidade revelada, mostrada e partilhada.

Um projeto que pretende questionar/interagir como arte pública, arte urbana, arte móvel, onde um autocarro (Dodge Brothers – 1933 da Old Timer Tours) que ora está estacionado na Quinta Magnólia, ora está em serviço pela cidade/ilha, comporta vários códigos QR que nos transportam para (in)confidências alojadas no site do projeto. A ambiguidade do físico versus digital, da materialização ou não do objeto, da aparência versus conteúdo, o físico que vive/remete para o digital ou o digital que existe pela procura/interação do físico... Ligado a um dispositivo GPS o fruidor na Quinta Magnólia também poderá acompanhar o autocarro quando este não está estacionado, saber a sua localização e/ou o movimento no interior do mesmo através de imagens vídeo capturadas em tempo real. Os clientes/turistas no autocarro podem visitar/interagir com a obra aquando o percurso pela cidade através dos códigos QR; outras localizações, outros públicos, outras interações , percursos que se cruzam, que apenas entram, dispensando convite ou autorização, pois o espaço público é isso mesmo, um espaço de todos onde cada um está na sua individualidade. Conversas/monólogos que se cruzam dispensando uma contextualização ou um fio condutor, apenas existem e disponibilizam-se, materializados noutras existências.

Foram feitas gravações de pessoas que se mostram, foi pedido a pessoas que falassem de si... foram gravadas conversas informais em lugares públicos: tudo ao mesmo tempo e cada qual no seu assento do autocarro. Cada assento (através de códigos QR) transporta-nos para uma viagem, para um encontro com o outro.

 

Posso entrar, ouvir, ver, ficar, refletir, chorar, ... ou simplesmente sentar e olhar pela janela... ou, sair na próxima paragem.

Texto de catálogo

Por Duarte Encarnação

Por Duarte Encarnação

“0 homem, no Ocidente, chegou a ser um animal de confissão” 
Michel Foucault in: História da Sexualidade


O projecto que nos é apresentado por Desidério Sargo, no domínio da viagem, corporiza muitos dos aspectos trabalhados desde o início do seu percurso artístico. Como factor principal, constitui ser a descoberta do outro, da pessoa na sua intermitente revelação e constante diálogo interno através dos seus anseios e medos, como debutante, Sargo fez um apelo à purgação crua e honesta com um intenso e incessante recurso à imagem fotográfica que depois passa para a gravação em vídeo a modo de entrevista, é um constante destapar da face, do rosto e do corpo, sem branqueamentos morais, uma oferta plural e diversa sobre a incógnita das relações humanas e, por síntese, da sua condição. Trabalhando indirectamente sobre as questões da raça e do género, e directamente sobre a vida no seu devir mundano, Sargo faz-nos ouvir atentamente entre os silêncios como quem precisa de obter mais detalhes pormenorizados da vida de algum desconhecido, convida-nos para uma empatia e posterior reflexão sobre as diferenças, neutralizando e apagando os uniformes sociais na capacidade de render tributo ao sentido da transitoriedade. Num dado momento, e numa obra do passado (2009) diz-nos: “sorria, está a ser filmado”, despindo literalmente os preconceitos adquiridos no desconhecimento e na arrogante ignorância do humano.
Através de um recorrente recurso ao diálogo e à presença frontal do outro, encontramos novamente a sua declaração do ser e do estar numa actualidade confessional do mundo. A presente proposta, com o título esclarecedor de (In)Confidências, continua ativando a linha traçada e constante deste modus operandi baseado num estratégico encontro a dois, pautado pela relação temporária de auscultação e visionamento (vis-à-vis) entre as pessoas reais e gravadas. Desta vez, Sargo serve-se de um transporte colectivo de passageiros, um autocarro modelo Dodge Brothers de 1933, recorrendo ao reforço de um subtítulo em latim: maxima fortitudo | quibus confisus es (grande força / confidências) que a permanência universal e inalterável da condição humana apela, o acto de condifenciar ou segredar. O autocarro, habitáculo provisório como reconstrução de um ambiente doméstico mecanizado, agora recuperado na essência de um passado na história inicial do transporte colectivo motorizado. Está construção a dois tempos ou, se quisermos, a duas velocidades alerta para a possibilidade de um anacronismo forçado, traduzido em cavalos de potência domesticados na engenharia dos mecanismos e das alavancas ainda num tempo demasiado físico e animal, metafórico da força de um motor (corpo próprio). A caixa em movimento transporta desejos e sentimentos, leva e traz corpos que constroem a complexidade da vida. De uma forma quotidiana, caras anónimas e oscilantes são enquadradas pelas molduras envidraçadas das janelas, sentados ou em pé, filtrando o vento húmido do inverno e o ar climatizado do quente verão, estes elementos humanos que estão num circuito de passagem, transportados, entre as paragens, num destino escolhido, certo, programado ou incerto e deambulante, um misto que poderia ser recuperado na experiência relatada por Robert Smithson (Monumentos de Paissac, 1967 ) tratando-se de um encontro entre o artista e a sua génese suburbana, numa audaciosa e romântica redescoberta entre dois mundos, o abandonado depósito industrial suburbano e a cidade higienizada. No autocarro de Sargo resulta ser importante o momento de localização pública, aponta-se mais para uma opaca utilização dos meios e do espaço insular (madeirense), é costume dizer-se: “vou saltar aqui”, (vou sair aqui) nesta próxima paragem, “saltar”, serão os resultados físicos gravados pela orográfica visão do participante ou do autor?, instalado entre as verdes montanhas e a água salgada que desenha e apaga o horizonte, tratando-se de um laboratório de experiências físicas dadas pela máquina revolucionária de locomoção numa viagem onde se definem os segmentos serpenteantes e inclinados, num sobe e desce de constante náusea e travessia. Muitas são as histórias e estórias que ouvimos nos meios de transporte, e que ganham um sentido particular no ondear ritmado pela paisagem acidentada da ilha, ao invés, as viagens expresso, agora em crescente popularidade de uma pretensão suburbana estável e veloz, atenuam para o esquecimento os movimentos do passado, a velocidade e a imediata possibilidade de estarmos “ligados” umbilicalmente ao mundo, contraria o percurso sinuoso tão característicos e genuínos da paisagem que se desenvolvem num lento e longínquo olhar de admiração, pelo precipício e pela água, recriação de montanha russa não espectacularizada, uma experiência comum e fenomenológica desta realidade, para a construção das gentes (ou dos genes...) nos rostos, nas mãos, nos cheiros, na náusea circular e oscilatória das curvas. Uma viagem pode ser o início de uma descoberta, é certo, e neste contexto de redescoberta com os medos, os anseios e as inquietações humanas, também são dominados pela força centrífuga da curva nos pensamentos, nas recordações, nas memórias, nas imagens e num forte domínio aglutinador e sinestésico, um autocarro é um habitáculo momentâneo onde se experimenta verdadeiramente a sinestesia dos cheiros perfumados do verde, das flores, do sabor a tabaco, café e dióxido de carbono, do fumo de travão e do suor escorrido entre as refeições sem tempo, até do fútil e profundo cheiro táctil e escolar de uma biblioteca, o resultado pleno de um mundo colectivo em transporte. Sargo equipará o autocarro de parafernália técnica (já incorporada no homem comum), identificável e situado no espaço geográfico, talvez geométrico do globo, tudo está mapeado, o planeta é um ser claustrofóbico (Virilio). O que se procura desta forma é uma nova forma, ainda que arcaica, de encontro, ouvir e ser ouvido, porque sendo um acto de inteligência humana, a comunicação oral e ainda mais, a linguagem háptica permite reconhecer na pele, no contacto, o outro, hoje tocamos mais nas imagens da distância. Sargo pretende deste modo voltar ao contacto, por vezes, os relatos e as experiências de confissão acarretam culpa e discernimento, o transporte colectivo remete para uma micro sociedade, uma espécie de aquário onde funcionamos como cardume, palco para a imitação e também espaço para o individual e intransmissível, uma amostra em análise. No interior do autocarro, modelo dos anos 30 recentemente restaurado para percursos de utilidade turística ganha um novo sentido na adopção de receber perto de 30 depoimentos, a posta em cena no interior do veículo (vehiculum) motorizado, e no conjunto de assentos onde se concentra e organiza a ergonomia dos corpos. Segundo o autor, tratam-se sobretudo de estórias, o participante presencia as confissões em várias línguas, uma moldura digital dirige a nossa atenção para um processo iniciático de empatia, nos costas dos assentos visualizamos códigos Quick Response (QR) que remetem para um destino rápido e directo às experiências do deciframento pelos meios (e maior presença) dos dispositivos móveis, disseminados como estojos de maquilhagem narcísica utilizados no dia a dia, o receptor trata de estimular um relato individualizado e cautivo da nossa extensão corporal (prótese tecnológica), proprietários provisórios de uma verdade contada, transmitida ou armazenada num servidor ubíquo onde se alojam as esperanças e confissões deste projecto. Os registos vídeo e as conversas são variáveis, outras estórias são gravadas exclusivamente em registo áudio, reaparece a magia do elemento sonoro, do contador de estórias, torna-se demasiado familiar e empática a voz do colectivo. Sargo confessa que parte da experiência que agora toma uma configuração artística foi vivenciada no passado e na primeira pessoa quando fazia o longo e sinuoso trajecto entre o oeste e o centro litoral da ilha, entre dois pontos geográficos, Ribeira Brava e Funchal, trajecto diário para dar início aos estudos superiores em artes plásticas, viagem esforçada e penosa, iniciada todas as madrugadas, em tom de sacrifício por conhecer algo mais. Possivelmente seja este o motor desta experiência que se quer partilhada, eu acredito que sim, mas agora, e noutro tempo, a viagem acontece de facto, um localizador GPS permite ao utilizador saber em tempo real a trajectória do autocarro, um mapeamento menos romântico e clinicamente sinestésico. Diz Sargo que, “o Intimismo é público”, na sua opinião, o distanciamento possibilita a acção ainda que por meio da incógnita de um convite visual, “quando vês o código ninguém perceberá para o que remete...”, o utilizador é conduzido às cegas para a experiência de um eu centrado no outro. Pelo no exterior do veículo, o público poderá vêr uma impressão, (um outro código QR que remete para o projeto) confirma se vai ser usado e o quê agora como painel publicitário móvel recuperando a linguagem do outdoor em contradição com a amálgama ruidosa de logótipos, marcas, bens e serviços, onde tudo é vendável, uma promessa do paraíso perdido. Desta forma, e até recentemente, o conceito de arte pública foi amplificado por artistas que utilizaram esta mesma estratégia para reverter ou dinamizar práticas transgressoras, na sua movimentação e na ebulição social da esfera pública. Como Sargo, souberam dar uso ao inconformismo social na “esfera pública” (Habermas) para uma arte participativa e afectiva, aberta às inquietações do mundo recente e, fundamentalmente, constituindo um termómetro social que sintoniza a nossa participação como cidadãos em contexto plenamente democrático, como na qualidade de vizinhos que partilham os interesses da discussão e da reflexão. A arte pública, como nos recorda o artista e teórico Siah Armajani, não trata de uma sacralização do artista, trata sobretudo da possibilidade do mesmo ser novamente um cidadão activo, a sua participação implica um prevalecer da dimensão utilitária, ainda nesta definição, a arte pública, ao invés da arte no espaço público, torna a obra localmente significante, destinando-se directamente ao cidadão (não ao especialista), pretende cruzar os significados estéticos, sociais, comunicativos e funcionais, que se traduzem numa obra dirigida às necessidades habituais das pessoas (não a si própria), é portanto, uma arte altruísta, que transforma a crítica da cultura e enaltece a afirmação da vida quotidiana. Neste grupo mínimo de requisitos, a elevação da consciência da experiência urbana é fundamental, a arte pública é não monumental, não patriarcal, não fálica, horizontal, constitui o necessário cruzamento entre as ciências sociais e humanas, desde a sociologia, a antropologia, os estudos culturais, a filosofia, o urbanismo (outras). Deste modo, a viagem proposta por Sargo, sendo literalmente sobre rodas, passa por um convite interior ao camuflado de cada um de nós, demostrando a característica ansiedade contemporânea na deslocalização do íntimo, através da reafirmação da confissão na prática artística, de um “eu confessional”, num confessionário ambulante e terapêutico, que permite também a abertura do público com o inesperado, com a gravação, como o reforça a artista Allie Light: “La cámara, como dice Irving, es un excelente confesionário. La gente quizá diga “No quiero hablar sobre esto”, pero enciendes la cámara, y de forma sorprendente lo hacen.”

Sobre

Licenciatura em Artes Plásticas – Pintura, Universidade da Madeira, concluída em 2002 Vive e trabalha na ilha da Madeira

Desidério Sargo

Artista Plástico

Desidério Sargo nasceu na Madeira em 1978, onde vive e trabalha. Licenciado em Artes Plásticas, Pintura pela Universidade da Madeira, concluída em 2002. Como formação complementar em 1999 integrou o Programa Sócrates/Erasmus frequentando a Facultad de Bellas Artes de Castilla-La Mancha, Cuenca – Espanha. Em 2001 desenvolveu, no âmbito do Programa Leonardo da Vinci, em Potenza, Basilicata – Italia: Curso de língua e civilização italiana; Estágio na companhia Gráfica Basileus scarl, ocupando-se da concepção de imagens digitais, quer fotográficas quer em 3D com particular atenção à figura humana; Estágio no Instituto Estadual de Arte, em colaboração, como assistente na docência e Estadia na "Fabrica Artis Giordano". Destacam-se ainda o WorkShop de escultura “Aplicações do molde na Escultura Contemporânea”, por Hermínia Martinez Perez, ISAD; WorkShop de Introdução ao Documentário, por Pedro Sena Nunes, SAAD, UMa; WorkShop “Taller de Autoedición” dirigido pela artista Miriam Shaer, Faculdad de Bellas Artes de Castilla-La-Mancha.

Expõe individual e coletivamente desde 1998. Em 2000 teve Menção Honrosa com a obra “MEMENTO HOMO QUIA PULVIS ES ET IN PULVEREM REVERTERIS” no III Salão de Primavera de Artes Plásticas da Madeira, Galeria Inquisição, Funchal. Em 2001 a Opera Segnalata, “ 1 m² di paesaggio” na Extemporânea Inter-regional de Pintura "Carlo Levi", Aliano, Itália. Em 2003 venceu o 1º Prémio Henrique e Francisco Franco com a instalação “23 espelhos” no III Concurso de Artes Plásticas, Casa das Mudas e Voto de Louvor da Assembleia Municipal da Ribeira Brava. Em 2007 destacou-se com o 1º Prémio Henrique e Francisco Franco com a instalação “SORRIA! Está a ser filmado” no V Concurso de Artes Plásticas, Casa das Mudas.

Apoios

Faça parte deste projeto: partilhe a sua experiência de viagem ou um depoimento (vídeo ou audio) enviando para o email abaixo indicado.

Quinta Magnólia
Funchal
Portugal
Telefone: (351) 919692366
Email: desideriosargo@gmail.com